sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Antes do outro

                                                           
            Ela não entendia.                   
            Logo que a campainha soava, insistente, Cibele corria para o quarto. Era estranho, mas, detestava a chegada do pai. Estranho, não. Ele surgia intensamente nervoso, agitado, tenso, com os olhos quase arregalados de conflitos. Seria o mundo lá fora, o mundo de seu pai, tão complicado? 
            Ali, no apartamento espaçoso, o dia era manso com seus irmãos, a mãe tranquila, de pernas torneadas, corpo forte e um olhar azul imenso.
_ Cibele, você já fez a lição? A mãe perguntava.
_ Já, já – dizia a menina – e enrolava-se em brincadeiras até a última hora. Tantas coisas pra fazer e entender ao longo do dia. Dias felizes. O dia. No começo da noite, a mudança: de lago calmo a um mar tremendo de ondas agitadas. Ela com nove anos. Os irmãos, um mais velho e o outro menor.
            _ Meninos, é hora do jantar chamava a mãe. E desabava escura, naquela mesa redonda e lisa, a angústia do pai. Os ouvidos dos três irmãos tão acostumados aos timbres altos e sonoros das vozes cheias de conflitos. A menina olhava aflita para a discussão entre os pais que enchia a sala. As paredes brancas pareciam escurecer. Ela olhava embaixo da mesa. Os pés de todos. O menor já estava lá perto das pernas da mãe como se quisesse segurá-la. O mais velho com as pernas cruzadas, tensas. E Cibele via os seus próprios pés descalços, inseguros. Não conseguia comer nem esconder-se. Tinha vontade de ir para o seu quarto. Às vezes, fixava o olhar no prato e encontrava nas bordas pequenas florezinhas rosas, salpicadas pelo molho vermelho. Naquele dia macarrão à bolonhesa. E a menina fazia desenhos com o garfo. Uma pequena borboleta.
            E os gritos intensos. Até a chegada do silêncio e a costumeira fala da mãe: _ Come, Cibele! Alexandre, sente-se na mesa! E você, Marcelo, já terminou?  Iniciava o jornal da TV, antes da novela. As notícias pareciam trazer mais tensão para o ar daquela sala: _ Esse país não tem jeito! Uma revolução! Re - vo - lu - ção! Só isso para resolver. Dizia o pai, já tomado com as notícias.
            Cibele terminava seu macarrão. "O mundo lá fora era realmente muito complicado.  Lá fora? O que seria uma revolução? Algo parecido com o que acontecia na mesa? O mundo estaria tão errado assim?" Pensava.  Na escola das freiras azuis, aprendia história, um professor cego do olho esquerdo dizia maravilhas sobre o Brasil e tudo parecia tão organizado, coerente e calmo naquele ano de 1978.  No entanto, a menina duvidava um pouco, pelo menos quando lembrava do seu pai dizendo sobre a revolução. Mas, o Brasil para ela era tão verde no mapa.  Enorme, perto dos outros países. E parecia tranqüilo, equilibrado.
            O sinal tocava e, no recreio, vozes por todos os lados. Gritos, bolas.  As crianças jogavam queimada.  Cibele, às vezes, corria para a biblioteca, terminava a lição. E ali, naquele lugar com um cheiro bom e janelas altas com grandes persianas, sentia-se sossegada. Não sabia por qual motivo buscava, nos espaços da escola, lugares isolados, secretos, incomuns.  Mas tinha encanto por escadas que davam para andares pouco usados, corredores escuros. A capela, tão fresca e com janelas que se abriam para muitas árvores. Sempre ficava intrigada com a cruz e o Cristo, na verdade não era bem intrigada, mas impressionada por aqueles pregos e feridas.
             Muitas vezes, corria com os amigos pelas escadarias que levavam ao salão do teatro. Ali havia o palco, escondido atrás de uma cortina verde musgo de veludo, pesada, com cheiro de mofo. Cibele achava graça de tomar lanche naquele lugar nada comum, mas não era o seu lugar preferido, nem dos seus amigos. 
            Numa manhã nublada, quando todos já haviam terminado o lanche, Cibele foi ao banheiro. Na volta passou em frente a uma porta já conhecida que, sempre fechada, guardava um jardim. Ela tentou abrir: fácil, não estava trancada.  Ao entrar, no meio de duas árvores viu um elefantinho amarelo de mola.  Quando bem pequena, brincava nele. "Ah, então está aqui este velho brinquedo, que antes fazia parte do parquinho lá debaixo" – falou para si. Teve uma sensação boa ao ver o tão conhecido elefante naquele espaço novo para ela. Realmente, não era um jardim usado pelas crianças. Parecia esquecido. Ela subiu no elefantinho, riu por dentro de se ver tão grande. E ele que parecia enorme quando era pequena – lembrou-se.
            Durante os recreios, quando Cibele cansava um pouco de tanto brincar com seus amigos, dava uma passada pelo jardim do elefante. No começo ia sozinha, como se fosse um segredo só seu. E permanecia quieta, ouvindo nada, gostava de se sentir sem ninguém. Um frio na barriga de repente. Então saia.  Porém, um dia levou os amigos para o seu jardim que já parecia um esconderijo. E juntos descobriram mais coisas, uma passagem de cimento que dava para o nada. Mas era uma passagem. Às vezes, era ali mesmo, no lugar mais seco e cinza do jardim, que desembrulhavam os lanches e comiam pães com geleia.
            Triiiiimmmm. _ O sinal! – diziam todos, e saiam correndo. Chegavam ofegantes na fila, e rindo.  Cibele ainda visitava sozinha o jardim para ter aquela sensação estranha de se sentir quieta.
            E os lugares que a menina mais gostava na escola pareciam sempre ter uma novidade. Certa manhã, bem cedo, ela foi à biblioteca para fazer sua lição e descobriu um livro de capa dura e verde em cima do balcão. O livro a intrigou, chamava-se “O Jardim Secreto”. Tinha um cheiro de guardado e muitas páginas. Cibele tinha um pouco de preguiça de ler livros muito grandes. “Mas o que teria naquele jardim?” pensou. Ela gostava de histórias. Estava acostumada a ouvir. Ler, menos. Perguntou à bibliotecária se poderia levá-lo. _ Claro, disse a moça tão simpática, é uma história bonita. Cibele preencheu a ficha. Levou-o para casa. O livro ficou algumas semanas no seu criado-mudo. Gostava de ver as figuras. Uma menina feia e emburrada na primeira página. E mais crianças nas outras. Um menino doente. Um jardim. Uma chave.
            Os jantares tensos de sua casa desconcentravam Cibele.  E o dia manso, entre lições e brincadeiras, a distraia.  Assim, não o lia. Às vezes, espiava a primeira frase, mas não continuava, preferia imaginar a história daquela menina emburrada. E ela se sentia assim também depois que o pai chegava.
            Cibele não leu o livro. Devolveu-o. Um dia voltaria a pegá-lo. _ Nas férias, sim! – falou baixinho para o livro e para a menina emburrada do desenho. E sussurrando ainda mais: _ Em julho, naqueles dias frios e chuvosos, em que não posso sair para brincar, vou te ler. – Como se fosse um segredo das duas meninas.
            Depois da mesa, depois do jornal e da TV desligada, a mãe ia lavar a louça. Os irmãos na sala. O pai lendo um livro no seu quarto. Ela, escondida, de gatinho ia olhar a mãe e achava engraçado vê-la de costas e não ser vista. Espiar a mãe. A torneira era fechada, a mãe enxugava as mãos no avental. Cibele, silenciosa, corria para o quarto rindo. Não fora vista. 
            E enfim, bem tarde, juntos, o sono nos olhos de todos. Era neste momento que o pai chamava os três para a história antes de dormir.
_ Não, hoje não quero, dizia Alexandre.
_ Nem eu, dizia Marcelo.
_ Ah, não. Vou dormir, falava Cibele, um pouco magoada com ele.
_ Então vou contar aos meus coelhinhos que moram aqui, dizia o pai.
_ Onde?
_ Onde?
_ Onde?
Ela não entendia.
Os fantásticos personagens que saiam da boca e olhos novos do pai, agora outro.

(Conto publicado na revista Carta Fundamental). Junho de 2010.
 

5 comentários:

  1. Carla...

    quanta delicadeza....
    quanta arte....
    nos deliciamos....


    A noite fica muito mais gostosa quando a gente encontra um blog lindo como o seu prá curtir...

    Vai ser a maior alegria te receber lá no nosso MIMO CHIC... um lugar cheio de surpresas, dicas e alegrias !!!

    Hug,

    Sol & Lulú

    P.S.: Estamos te seguindo !

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  2. Nossa que delícia de comentário. Obrigada, Sol & Lulú. Vou visitar vocês com o maior prazer.

    Bem-vindos!

    Abraços, Carla

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  3. carla:
    levo pra minha página no fb.
    obrigado.
    romério

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