Autora; Ani Almeida
Rebento do céu, não minto.
De lá caí, em pranto.
Dos meus pecados, apenas sinto.
Redenção e cura ali, no manto.
As letras que compõem além dos
versos foram gravadas uma a uma à mão, na borda da roupa exposta. Testamento
vivo de quem já partiu desnudo, aquela peça conta mais da história de um homem
do que se este pudesse fazê-lo. Uma história em detalhes para além d’As mil e
uma noites.
Quando possuída pelo desejo
visceral de embrenhar-se naquelas vestes, almejando a apropriação de sua
própria história a partir dos fatos gravados de outrem, nada sabia a moça sobre
aquele manto (sagrado na Arte), apenas sua óbvia beleza dogmatizante.
Desejava quieta e libidinosa ser
possuída por aquelas vestes, adentrar em seus emaranhados e penduricalhos;
fazer parte daquela trama misteriosa e imensa, densa, que muito bem desenhava a
confusão da vida de cada homem e mulher.
A trama era o universo. Queria
ela ser o universo. O conjunto das galáxias e brilhos dos olhares fincados em
vinte quilos de tecido. Se não fosse forte o suficiente para suportar, talvez,
engordaria.
Em todos os dias daquela
exposição, ela fazia questão de cuidar bem do cantinho daquele pedaço sagrado de
mundo. Pela manhã, pedia a benção, colhia o pó, esvaziava a lixeira. Mirara ora
os detalhes do bordado, ora a ombreira. Tinha fé que seu pescoço caberia no
buraco vermelho, oh se cabia! No fim do expediente transformava-se em beleza,
cabelo solto, roupa elegante e maquiagem perfumada. Despia o uniforme e se
acovardava toda pensando: Amanhã!
Até que a tremedeira de um frio
na barriga impediu-a de tocar as vestes pagãs. E assim como veio ao mundo
cortou os salões vazios por entre os corredores ocultos até estancar ofegante
frente ao manto iluminado que lhe abria os braços.
Pensa ‘não sei se devo’ ao passo
que estendeu a mão para tocar-lhe a face.
As pontas dos dedos reagiram aos
primeiro toque com estranheza à quantidade imensa de planos e superfícies que
decodificavam. As palmas das mãos tomavam para si o universo daquelas tranças,
barrados e nós. Eis que o corpo inteiro quis recostar-se ao afeto incondicional
do manto. Um abraço aos braços estendidos.
De repente o corpo tateia e se
abaixa em direção aos barrados, o desejo é de posse. Os dedos caminham entre
frente e avesso da peça, indecisos de violar-lhe os segredos.
Num estrondo moça nua e manto
sagrado vão ao chão, assustados.
Não há tempo, em breve o vigia
virá: ou se consuma o desejo da posse, ou inocente punição tomará.
O guarda chega arfante, de
cassetete na mão. Arruma o chapéu e aperta os olhos. No chão, o manto dito
santo assumiu a forma de bela mulher, em perfeição de curvas. Eis que o mundo
todo cabe nela e toda a beleza do universo ali reluz. Até mesmo o belo de seu
próprio ser, talvez nunca descoberto. Cobiça a beleza do manto caído, deseja
possuí-la para si.
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